por Paulo C. Santos
Em artigo prévio (SANTOS,2024) elaborei uma discussão sobre inteligência artificial e a busca de uma definição para o termo. Uma vez definida, hoje falarei sobre IA e os direitos dos cidadãos, à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH – da qual o Brasil é signatário), da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88) e da Lei nº 13.709/2018 ou Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – já que o assunto tem a ver com informática.
UM TELEFONE SOBRECARREGADO
José adquiriu um chip de celular pré-pago da operadora TIM (Telecom Italia Mobile), para instalar num telefone fixo em sua casa. Ele tem sob sua responsabilidade um casal de idosos: ele com 96 anos e ela com 87. José informou o número apenas para três pessoas fora de sua casa: ao porteiro do condomínio, e aos idosos, para que pudessem ligar a qualquer hora em caso de urgência – ou de problema com a operadora de seus outros celulares, a Claro (pertencente ao grupo mexicano América Móvil).
Atualmente, José lida com mais de 40 ligações semanais para esta linha. São cobradores procurando pessoas desconhecidas, campanhas de marketing, que procuram José pelo nome, ligações que nada dizem se ele ficar calado, robôs da operadora Oi (também pertencente à América Móvil), bandidos de madrugada com o golpe do “Pai” etc. Algumas ligações são prova cabal de que os dados de José foram parar nas mãos de algumas pessoas e grupos não autorizados por ele. E a pergunta é: Quem liberou ? Só poderia ser a TIM, em certos casos.
Segundo a DUDH, em seu artigo 12:
“Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.”
Segundo a CF/88, em seu artigo Artigo 5º, Inciso X:
“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
Segundo a LGPD, em seu artigo 2º:
“A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamento o respeito à privacidade, a autodeterminação informativa, a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem.”
IA E TRABALHO REMOTO
As organizações públicas implantaram o trabalho remoto para que seus servidores pudessem trabalhar parcialmente em casa. Esta foi uma herança da Covid-19, que perdura em nossos dias e vamos saber o porquê em breve.
O CNJ, no 6º Balanço de Sustentabilidade informou:
“Em recursos financeiros, a economia com papel em 2021 equivale a R$ 4,3 milhões. Já a redução no consumo de copos descartáveis representa dispêndio menor de R$ 423 mil e, no consumo de água mineral em embalagens descartáveis e retornáveis, de R$ 900 mil. Em 2021, o Judiciário também diminuiu em R$ 6,5 milhões os gastos com telefonia e, em R$ 5,5 milhões, o gasto com aquisição de suprimentos de impressão, além de economizar R$ 2,6 milhões em contratos de terceirização de impressão. A redução no consumo de água e esgoto gerou uma economia de R$ 7,9 milhões e de R$ 89 milhões nos gastos com contratos e produtos de limpeza.” (CNJ,2021)
As empresas privadas também seguem a tendência de economia, ao oferecerem trabalhos remotos, parciais ou não. Uma olhada nas ofertas mostra que os valores de salário oferecidos estão abaixo do valor do salário mínimo nacional já que, como alardeiam os empregadores, o “trabalho é parcialmente remoto”. O fato é que os empregados gastam sua energia, seus suprimentos e seus meios de comunicação, além de trabalharem mais tempo quando estão em casa. Eles apresentam maior produtividade. Não vemos, no entanto, nenhum movimento para melhoria de salários e condições de vida de trabalhadores por conta de toda essa economia. Há apenas o aumento do lucro nas demonstrações financeiras das empresas.
Mas as ferramentas de IA e Ciência de Dados estão sendo avidamente consumidas pelas organizações para localizar cenários de corte de gastos.
Há prós e contras. Por exemplo, uma pesquisa da McKinsey revela que várias empresas planejam reduzir o espaço de escritório em até 36%, o que gera economia direta em custos imobiliários (LUND,2021). Além disso, a empresa de tecnologia Buffer destaca que muitos trabalhadores remotos relataram maior produtividade e melhor gestão do estresse, o que pode resultar em um impacto positivo nos custos relacionados à saúde e ao bem-estar dos funcionários (BUFFER,2023).
“A COVID-19 poderá estimular uma maior adoção da automação e de inteligência artificial (IA), principalmente nas categorias de trabalho que envolvem alta proximidade física.” (BUFFER,2023).”
Segundo a (CF/88)
Artigo 7º, Incisos IV e VII:
“Inciso IV: “Salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.”
“Inciso VII: “Garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável.”
Artigo 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Este rebaixamento de salários devido ao trabalho remoto irá forçar os trabalhadores a procurarem mais um emprego e a se dedicarem, portanto, a mais horas de trabalho. O sistema capitalista lucra duplamente, a salvo das questões trabalhistas que normalmente seriam cobradas pelo governo.
Este cenário reflete um desequilíbrio nas relações de trabalho, onde os benefícios econômicos das empresas não se traduzem em melhorias para os trabalhadores, o que pode gerar impactos negativos na dignidade e nos direitos fundamentais desses trabalhadores.
Segundo a DUDH:
Artigo 23, Inciso 3: “Todo aquele que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e, se necessário, complementada por outros meios de proteção social.”
Artigo 25, Inciso 1: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.“
O fato de que as economias feitas pelas empresas não resultam em melhorias nas condições de vida dos trabalhadores afronta estes artigos da DUDH, que defende o direito a um padrão de vida adequado.
Segundo a LGPD:
Artigo 2º, Incisos I e VII:
Inciso I: “O respeito à privacidade.”
Inciso VII: “O direito à informação clara sobre o tratamento e os dados pessoais.”
Embora a LGPD se concentre na proteção de dados pessoais, o trabalho remoto levanta questões sobre a privacidade e o tratamento dos dados dos trabalhadores. Se as empresas monitoram ou utilizam os dados dos empregados de forma inadequada, sem transparência ou consentimento, isso pode representar uma violação da LGPD. Além disso, o uso de infraestrutura própria pelos trabalhadores para realizar suas funções, sem a devida compensação, pode ser considerado uma prática abusiva.
Além disso, os motoristas de aplicativo e entregadores são monitorados rigorosamente. Não é clara a destinação e uso desses dados.
OS ESCRAVOS DO ALGORITMO
Mas o uso da IA em aplicativos de entrega de produtos e taxis pode agravar a situação das famílias em todo o mundo.
Na cidade serrana de Teresópolis/RJ, observei o crescimento do número de veículos a serviço do Uber com extensas marcas em suas laterais. Perguntando aos motoristas, a maioria das explicações foi: Impacto de entregadores em motos. Segundo os motoristas entrevistados, os motociclistas ignoram as leis de trânsito e andam em alta velocidade em favor da velocidade de entregas e maior faturamento.
“Eles desrespeitam os sinais de trânsito, andam em alta velocidade, nos cortam, andam em pontos cegos. Muitos nem têm carteira de motorista, porque a moto e dividida diariamente entre o proprietário e terceiros.“.
Já na cidade do Rio de Janeiro, pude observar o consumo de maconha em pontos de motociclistas entregadores, junto a grandes shoppings, mesmo perto de viaturas da Polícia Militar. Isto já valeria uma pesquisa sociológica. Eu chamo esses trabalhadores de “escravos do algoritmo”.
“Para se ter ideia, ao fim de 2023, as vendas por mês no aplicativo (iFood) giravam em torno de R$ 5 bilhões (em volume bruto de mercadoria – GMV, na sigla em inglês); ao passo que, em 2024, esse número saltou para R$ 6 bilhões. Isso significa um faturamento anualizado de cerca de R$ 72 bilhões.” (VALOR,20204)
LONGO CAMINHO
Estamos todos experimentando a IA e os insights que ela possibilita. Mas, para variar, o Capital a experimenta intensamente, antes que o cidadão possa avalia-la com controles e objetivos definidos por ele. E o Capital obtém seus resultados de modo quase imediato, sem pensar muito em detalhes além do lucro.
Os resultados de agora são: o ataque à privacidade, o aviltamento do salário mínimo e a exploração exaustiva da mão-de-obra e a diminuição da segurança e saúde laboral.
Precisamos urgentemente de IAs que ajudem o cidadão comum a viver melhor[1].
REFERÊNCIAS
- (BUFFER,2023). “State of Remote Work 2023”. Buffer. 2023. Disponível em <https://buffer.com/state-of-remote-work/2023>.
- (CNJ,2021). “6º Balanço da Sustentabilidade do Poder Judiciário”. CNJ. 2021. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/6o-balanco-da-sustentabilidade-do-poder-judiciario-020822.pdf>.
- (LUND,2021) Susan Lund et alli. “O futuro do trabalho pós-COVID-19”. 2021. Disponível em <https://www.mckinsey.com/featured-insights/future-of-work/the-future-of-work-after-covid-19/pt-BR>
- (SANTOS,2021) SANTOS, P.C. “Por uma IA Pessoal”. 2021. Disponível em <https://treinamentolivre.com/aluno01/arquivos/145>.
- (SANTOS,2023) SANTOS, P.C. “Inteligência Artificial: Em Busca de uma Definição”. 2023. Disponível em <https://treinamentolivre.com/aluno01/arquivos/1833>.
- (VALOR,2024) “iFood espera crescer com maquininha de cartão” in Valor Econômico, 17 de maior de 2024. Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/05/17/exclusivo-ifood-espera-crescer-com-maquininha-propria-de-cartao-diz-novo-presidente.ghtml.
[1] Sugiro ao leitor interessado em detalhes, a leitura de meu artigo “Por uma IA Pessoal” (SANTOS,2021).
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