Extraído do livro “2084: Uma ficção baseada em fatos reais sobre o aquecimento global e o futuro da Terra“, de James Lawrence Powell. A obra, de 2020, foi publicado no Brasil em 2022 pela Editora Sextante. Apresenta uma visão distópica do futuro, baseada em projeções científicas sobre os impactos das mudanças climáticas.

Nascido e criado em Phoenix, Steve Thompson é um engenheiro hidráulico de 72 anos que trabalhou no Projeto do Arizona Central. Antes da Guerra Canadense-Americana, ele se mudou para Saskatchewan e se tornou cidadão canadense.
Steve, quando sua família chegou ao Arizona ?
Meus bisavós se mudaram para Phoenix logo após a Segunda Guerra Mundial, juntamente com outras famílias de ex-militares – todos vinham em busca do sonho americano. E de modo geral o encontraram.
Ao longo da segunda metade do século passado e durante algum tempo neste século, a demanda por moradias em Phoenix manteve a explosão imobiliária em crescimento acelerado. As pessoas aproveitavam a vida boa e se esqueciam de que estavam vivendo em um deserto, cujo índice anual de precipitação pluviométrica era de apenas 200 milímetros.
A maioria dos moradores não imaginava de onde vinha a água que saía de suas torneiras. Podiam ter ouvido falar de alguma com coisa chamada Projeto do Arizona Central, que trazia água do lago Mead, no baixo Rio Colorado, para a cidade de Phoenix. Mas onde o rio Colorado obtinha sua agua ? Nos campos de neve das encostas a oeste das montanhas Rochosas, a centenas de quilômetros de distância. Se houvesse alguma alteração na época do degelo ou na quantidade de neve que caia nas Rochosas, Phoenix se veria em sérios apuros. Mas ninguém se preocupava com isso.
Na virada do século, as autoridades encarregadas do planejamento para o Arizona Central achava que a população aumentaria para aproximadamente 7 milhões de pessoas por volta de 2050.
Em retrospecto, foi uma suposição ridícula. Quando meus bisavós vieram para ca, em 1950, a cidade de Phoenix propriamente fita tinha apenas cerca de 100 mil habitantes. No ano em que nasci, 2012, estava com 1,6 milhão. Agora está voltando no tempo, aproximando-se dos 100 mil habitantes de novo E até isso pode ser muito.
Até a década de 2020, tudo parecia estar melhorando em Phoenix. A cidade vinha ficando mais quente a cada ano, mas todos os prédios tinham ar-condicionado; assim, simplesmente permanecíamos em recintos fechados durante o auge do verão. Nunca pensamos de fato a respeito do que faríamos se faltasse energia e não pudéssemos ligar nossos condicionadores de ar quando quiséssemos. Não pensamos que, se as aguas do rio Colorado baixassem em função do aquecimento global, conforme previam os cientistas do clima, haveria menos água para mover as turbinas das represas Hoover e Glen Canyon e, com isso, menos energia elétrica. Logo, se tivéssemos uma seca realmente rigorosa, também teríamos falta de energia elétrica.
Quando o senhor percebeu que as coisas haviam mudado ?
Acho que posso dizer até a hora, pois é a lembrança mais vívida de minha vida. Foi em 2027, numa manha quente de verão, quando minha mãe atendeu a batidas na porta e se deparou com dois homens, ambos de uniforme. Um deles tinha um revolver Smith & Wesson .38 pendurado na cintura; o outro segurava uma caixa de ferramentas. Aquela pistola me causou uma grande impressão. Os dois homens usavam distintivos do departamento de águas da cidade. Como parte de um programa abrangente, vinham instalar uma válvula acionada por controle remoto que limitaria o consumo diário de água de minha família a 284 litros por pessoa. Quando alcançássemos esse limite, a válvula se fecharia e não receberíamos mais agua até 00h01 do dia seguinte.
É claro que o departamento de águas, os jornais e a TV já haviam anunciado que o racionamento estava a caminho, mas o impacto da medida só atingiu nossa família quando aqueles dois homens apareceram à nossa porta.
Se o racionamento diário de 284 litros por pessoa não promovesse economia suficiente, o departamento de águas poderia reprogramar remotamente as válvulas para um limite menor. Qualquer um podia ver o que estava para acontecer. A penalidade para quem adulterasse as válvulas seria uma multa e uma quota ainda mais reduzida. Caso repetisse o delito, o dono da casa seria condenado a dois anos de prisão sem chance de redução da pena por bom comportamento. Para que ninguém deixasse de entender a mensagem, painéis eletrônicos distribuídos pela cidade exibiriam os infratores sendo conduzidos pela policia.
A limitação do consumo per capita de água a 284 litros por dia – ou menos, caso o departamento de águas decidisse reduzir a quantidade -, quando apenas duas décadas antes um morador de Phoenix consumia mais de 757 litros diariamente, significava que teríamos que mudar bastante o modo como vivíamos. As famílias precisaria pensar no planejamento do uso da água do mesmo jeito que planejavam seu orçamento doméstico. Só que com uma grande diferença: em caso de necessidade, uma família poderia pegar dinheiro emprestado ou fazer compras com um cartão de crédito; mas ninguém em Phoenix emprestaria ou venderia sua água, nem mesmo por dinheiro vivo.
Equipamos então nossas casas com descargas econômicas nos vasos sanitários, torneiras que só liberavam água durante alguns segundos e banheiras, pois ninguém mais tomava banho de chuveiro. De qualquer forma, ter um chuveiro em casa havia se tornado ilegal. Tomávamos banho de banheira uma vez por semana, como faziam nossos antepassados. Também usávamos água cinza (água de reuso) para dar descarga nas privadas. Alguns economizavam ainda mais usando penicos ou instalando latrinas externas.
Como as autoridades também haviam banido a irrigação de gramados, em pouco tempo não havia mais nenhum. Os inúmeros campos de golfe em torno de Phoenix foram fechados. Manter um gramado na propriedade era pedir uma visita da patrulha de águas. À medida que mais e mais pessoas abandonavam suas casas, os gramados simplesmente foram secando.
No entanto essas medidas de economia não funcionaram. O consumo de agua de fato caiu, mas, mesmo na década de 2030, as pessoas continuaram a se mudar para c, apesar dos alertas de que a água e a energia não seriam suficientes. H sempre uma lacuna entre a percepção das pessoas e a realidade. Quando o consumo médio é cortado pela metade mas a população dobra, voltamos ao ponto de partida. Como não se pode forçar as pessoas a se mudarem, o que resta é racionar a água e ir reduzindo a quota.
Estar ao relento na metade do dia era arriscar a vida. Embora eu já tivesse ido embora na época, sei que Phoenix na década 2040 era tão quente quanto fora o vale da Morte na década de 2000 – talvez até mais. A única coisa que se podia fazer era permanecer em locais fechados e, se fosse preciso sair, correr até o refúgio climatizado mais próximo. Mas o ar-condicionado requer energia elétrica, e a falta de água reduziu a produção das hidrelétricas. Logo, a cidade começou a racionar eletricidade também. Na metade do dia, as ruas e calçadas de Phoenix ficavam praticamente vazias. Crianças e animais domésticos já eram vistos fora de suas casa. Os idosos tinham os próprios problemas: para eles o ar-condicionado era uma questão de sobrevivência. Aqueles que não tinham acesso a ambientes refrigerados ou não tinham como sair da cidade deram a Phoenix o título de detentora do maior índice de mortalidade de idosos dos Estados Unidos.
Todos os aspectos da vida no Arizona Central haviam mudado para pior. A época em que alguém poderia se aferrar a ilusão de que calor e secas eram parte de ciclo natural que poderíamos suportar já terminara havia muito tempo. Mesmo ruins como estavam, as coisas ainda iriam piorar e permaneceriam ruins, sem nenhuma expectativa de melhoria. Para a americanos, sobretudo os do Sudoeste, berço do sonho americano, esse era um conceito novo.
Presenciei meus pais envelhecerem prematuramente ao perceberem que seus últimos anos não seriam a época agradável pare a qual haviam feito planos e economizado. Qualquer um podia ver que a coisa mais inteligente a ser feita era sair do Arizona, mas, com milhares de casas novas vazias em áreas não totalmente urbanizadas e sem água, os preços das residências haviam despencado. Como meus pais não tinham condições de liquidar a hipoteca de nossa casa, não possuíam o capital nem o crédito para comprar uma casa nova em algum lugar mais fresco e úmido. De qualquer forma, nas cidades que atendiam a essas características, a procura elevara os preços das moradias a um patamar inalcançável. Jovens casais dispostos a correr riscos muitas vezes simplesmente deixavam para trás seus lares e hipotecas, sem sequer se darem o trabalho de trancar as portas, pois sabiam que jamais voltariam. Para os idosos, porém, ir embora não era opção. Para mim era. Assim, em 2032 despedi-me tristemente de meus pais e rumei para o Canadá.
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